terça-feira, 24 de novembro de 2009

A sucata portuguesa


Tristes os dias que vivemos e o local que habitamos. Deprimentes as notícias que recebemos de políticos, banqueiros, empresários, altas figuras de Estado todos os dias. Demente a situação empresarial em Portugal e as condições económicas em que vivemos, logo esta, a que possibilita os tão desejados grandes salários, subsídios, pensões e excelentes modelos de vida e bem estar social…mas não cá.

Cá é a “sujeira” do dia-a-dia, típica de um país cujo sonho foi a aproximação à Europa mas que se contenta com o Norte de África, aquela “nojeira” que tem sustento na corrupção, no tráfico de influências, na subordinação. Um meio empresarial frágil, incompetitivo e selvagem. Economicamente inoperante e socialmente injusto.

Um aparelho judicial vergonhoso, atabalhoado, temeroso, corrompível e ineficiente. Caracterizado por magistrados e advogados alheios ao bom funcionamento de um dos pilares da democracia, um pilar essencial da economia de mercado, um obstáculo à “importação” de empresas para a criação de emprego no nosso país. Sujeitos que se debandeiam em protagonismo e ligações profissionais aos mais diversos sectores do Estado e da comunicação social, onde as ligações perigosas e destruidoras de um funcionamento pragmático assombra os empresários que, cá, «pretendiam» exercer os seus negócios.

A educação miserável, inexigente, inclusiva e sem resultados finais. Basta-nos comparar o nível de formação de um estudante de leste com o 12º ano e um dos nossos formandos. Um universitário espanhol com um universitário português. As escolas públicas colocam, em oposição, bons e maus alunos, alunos que querem aprender com alunos que “partem” a carteira ou insultam o professor, crianças felizes em casa mas temerosas na escola, absorvidas por um ambiente de autêntico facilitismo e “guerra escolar”. Um sistema inoperante, onde os manuais não têm qualidade e onde o ministério tem excessiva participação, exames onde os maus alunos conseguem o mesmo aproveitamento que os bons alunos. Um país onde a disciplina de Educação Física entra para a média final escolar!

A fiscalidade. Monstra, complexíssima e em constante mutação, onde não se conhece o real estado das empresas, apenas alguns rendimentos declarados. Empresas em insolvência que continuam a pagar o PEC e outros impostos ridículos, que pretendem não combater mas apenas ocultar parte da evasão fiscal que todos sabemos e, no meu caso, comprovamos isso mesmo. Uma fiscalidade tal, que hoje nem um licenciado e mesmo um mestre consegue compreender ou, no mínimo, conhecer, pelo que muitos empresários, especialmente aqueles a que eu chamo “da 4ª classe”, têm dificuldades redobradas em conhecer este regime fiscal actual, por ser diferente do de há uno e incomparável com o de há 10 anos.

Por vezes sonho com uma espécie de 24 ou 26 de Abril para que, pelo menos, se corram com estes políticos insensíveis às necessidades e carências da nação, que lideram para proveito próprio e como carreira de uma vida. Um quadro semelhante ao da década de 20, quando a I república foi “expulsa” pelo povo, dando lugar ao reinado de Oliveira Salazar. Tanto foi assim que, nesse tempo, Mário Soares escreveu um livro “Le Portugal Bailloné” em que descrevia um panorama negro sobre a sociedade portuguesa e que coincide na perfeição com a situação que vivemos hoje. Nesse tempo, o povo foi obrigado a recorrer a Salazar porque os Partidos não deslumbravam soluções imediatas, um pouco à semelhança do que vai acontecendo hoje.

Um país recluso de um lugar onde cada vez menos se quer e se pretende estar, onde não se consegue viver ao nível dos europeus, onde não se conseguirá (e cada vez menos) envelhecer com qualidade e onde a inserção no meio societário é cada vez mais díficil, com as desigualdades em crescendo e com o “esfarrelar” da classe média. Um país onde mais de 50 mil pessoas entre as idades dos 40 e 50 já nem se dignam a procurar emprego e se sujeitam à rejeição de uma vida em condições, num país dito europeu e merecedor de TGV’s e novos aeroportos. Um Brasil na Europa, um riquismo próprio de um qualquer miserável país africano e uma mentalidade sul-americana de mais sol e menos trabalho.

É a triste realidade dos nosso dias, uma situação que não vivíamos desde meados de 1910 e que se agravará durante, pelo menos, mais 10 anos nesta situação. Sem solução à vista, quer no lado do Estado onde governam 2 partidos incapazes, quer do lado da economia onde existe cada vez menos incentivo a vir para cá e cada vez maior distância para a principal concorrência: os países de Leste. O Estado endividar-se-á, cada vez mais, até ao ponto em que não terá mais capacidade para tanto subsídio e pensão, em que elas cairão para 100 e 200 euros e em que a miséria imperará quando, na Europa, nos cortarem o acesso ao capital estrangeiro (muitos já o prevêem no prazo de 5/6 anos). O português, na maioria, uns por ainda terem a 4ª classe e outros vítimas da “educação política” que hoje vigora nas escolas, não compreende e não é capaz de fazer este diagnóstico, não possui discernimento e conhecimento para prever o que acontecerá no nosso Portugal daqui a meia década (se os projectos de obras públicas anunciadas avançarem). Não peçam, a quem se afirma sério e ambicioso, para ficar e lutar pela melhoria do nosso país porque, na realidade e sem um regime diferente, os problemas não serão resolvidos e a população afundará no desemprego e nos baixos salários e pensões, situação que a crise internacional antecipou no tempo e ao qual as grandes obras darão a machadada final.

O amor à pátria já foi chão que deu uva. Hoje o amor é à globalização que tem ainda, como maior obstáculo, a cultura linguística que não se compreende, todavia, como fácil mas que é e deve ser susceptível de uma luta mais justa, sempre com a motivação de que é um objectivo alcançável, ao contrário do objectivo Portugal que não se vislumbra realizável.


Jorge Manuel Honório


Ps: Há muitos meses atrás e aliás num texto meu que está publicado aqui no blog, referia eu que a única via de compensação que se nos oferecia para responder a tal desorçamentação seria a via do aumento dos impostos e explico, inclusive, o porquê da minha visão na altura. Parece que hoje assistimos à confirmação daquilo que era a minha expectativa. Se eu já o sabia, será que os políticos na campanha para as legislativas também não o sabiam? Isto confirma o que refiro neste texto.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O (E)estado da democracia


Um excelente extracto de uma conversa entre Miguel Sousa Tavares e uma amiga estrangeira num regresso a Portugal, enviado pelo meu amigo André Caeiro.


Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa. Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o que vê:

- É sempre assim, esta auto-estrada?

- Assim, como?

- Deserta, magnífica, sem trânsito?

- É, é sempre assim.

- Todos os dias?

- Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.
- Mas, se não há trânsito, porque a fizeram?
- Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto.

- E têm mais auto-estradas destas?

- Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio. Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me.

- E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões?

- Porque assim não pagam portagem.

- E porque são quase todos espanhóis?

- Vêm trazer-nos comida.

- Mas vocês não têm agricultura?

- Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável.

- Mas para os espanhóis é?

- Pelos vistos...

Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:

- Mas porque não investem antes no comboio?

- Investimos, mas não resultou.

- Não resultou, como?

- Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.

- Mas porquê?

- Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos.

- E gastaram nisso uma fortuna?

- Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos...

- Estás a brincar comigo!

- Não, estou a falar a sério!

- E o que fizeram a esses incompetentes?

- Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.

- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?

- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km.

Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.

- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?

- Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.

- Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa?

- Isso mesmo.

- E como entra em Lisboa?

- Por uma nova ponte que vão fazer.

- Uma ponte ferroviária?

- E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.

- Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!

- Pois é.

- E, então?

- Então, nada. São os especialistas que decidiram assim.

Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.

- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta...

- Não, não vai ter.

- Não vai? Então, vai ser uma ruína!

- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína - aliás, já admitida pelo Governo - porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.

- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?

- Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!

- E vocês não despedem o Governo?

- Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo...

- Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?

- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.

- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?

- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.

- Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter?

- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.

Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:

- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?

- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa.
- Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?

- É isso mesmo. Dizem que este está saturado.

- Não me pareceu nada...

- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.

- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?

- Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido.

- E tu acreditas nisso?

- Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo?

- Um lago enorme! Extraordinário!

- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.

- Ena! Deve produzir energia para meio país!

- Praticamente zero.

- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!

- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.

- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar - ou nem isso?

- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais.

- Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada?

- Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor.

Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:

- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?

- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.

Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:

- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta autoestrada sem ninguém!

sábado, 7 de novembro de 2009

As contas do TGV: um comboio para implodir?


I - Economia e política da decisão


“É um empreendimento enorme e desproporcionado para a dimensão da economia portuguesa.”

“Os financiamentos comunitários para o período 2007-2013 para este tipo de projectos ascendem a €3,9 mil milhões, dos quais €383,38 milhões (10%!) foram atribuídos a Portugal. Devemos ter presente, para avaliar o significado destes números, que a população portuguesa representa 2,1% da população da UE e 1,4% do seu PIB e que é em torno destes valores que, a custo, se conseguem negociar as alocações dos diversos fundos comunitários destinados ao País.”

“Os países do Leste europeu, nossos concorrentes e parceiros, sabiamente, não embarcaram neste comboio.”

“O TGV é um projecto economicamente errado e socialmente injusto. Economicamente não é sustentável sem o concurso de enormes verbas do Estado, tanto para a construção como para a operação, e terá efeitos reduzidos ou negativos sobre o crescimento. Socialmente, os seus utilizadores, altamente subsidiados pelo Estado, não serão a grande massa da população mais necessitada nem das regiões interiores mais pobres e em decadência. Os custos e os benefícios do TGV são mal conhecidos. A propaganda da indústria e os interesses políticos imediatos retiram transparência às contas. Tirando a reprodução dos dados oficiais e alguns pronunciamentos críticos avulsos, em geral mal fundamentados, pouco se encontra que permita uma visão objectiva do projecto da alta velocidade em Portugal. O TGV é fruto de objectivos políticos bem precisos e localizados (caso de Espanha e China) e de estratégias industriais de certo capitalismo de Estado (Japão e França). “

“A alta velocidade é uma tecnologia altamente complexa e cara, que não resiste à prova do mercado, não sendo sustentável sem o profundo patrocínio e suporte dos Estados. É um encargo insuportável para países como Portugal, que lutam desesperadamente por um modelo económico viável. As apostas anteriores nas obras públicas não resultaram. Agora não será diferente. O que há de novo senão diferenças de protagonistas? Estamos nós a beneficiar do formidável programa de construção de auto - estradas dos últimos 20 anos? Que tem o TGV de especial que permitirá fazer diferente? Insiste-se no mesmo erro e os resultados serão replicados. Pressionados pela pulsão integradora de Espanha, pelas indústrias francesa e alemã e pela curta ideia de "modernidade" dos poderes públicos, o TGV pode efectivamente vir a construir-se, inclusivamente com as 5 linhas visionadas. Tudo dependerá da duração da crise internacional; se esta durar o TGV irá avançando. Se a crise se resolver, a pressão sobre o Orçamento do Estado será tão forte que o TGV parará onde estiver.”

“Os mesmos países que agora nos impulsionam a construir a alta velocidade serão os mesmos que, entretanto, com a suas contas arrumadas pelas suas pujantes economias, nos vão exigir talvez um novo corte nas pensões para poder suportar os custos das linhas então já existentes.”

“Procurarei mostrar nos próximos artigos, com base no que de mais avançado se conhece da análise económica da alta velocidade, que nenhuma linha de TGV se deveria construir em Portugal, agora ou no futuro, e que nunca tal foi no passado uma opção razoável. “

1 O presente artigo é o primeiro de uma série de 3 dedicada à análise económica da alta velocidade em Portugal. O 2º artigo avaliará os custos e o 3º os benefícios do projecto.
2 Em 2010, a Espanha ocupará o lugar do Japão como o país com a mais extensa rede de alta velocidade.

Avelino de Jesus - Director do ISG (Instituto Superior de Gestão)

domingo, 1 de novembro de 2009

A Farsa


O problema com o furor que provocaram os comentários de Saramago sobre a Bíblia (mais precisamente sobre o Antigo Testamento) é que não devia ter existido furor algum. Saramago não disse mais do que se dizia nas folhas anticlericais do século XIX ou nas tabernas republicanas no tempo de Afonso Costa. São ideias de trolha ou de tipógrafo semianalfabeto, zangado com os padres por razões de política e de inveja. Já não vêm a propósito. Claro que Saramago tem 80 e tal anos, coisa que não costuma acompanhar uma cabeça clara, e que, ainda por cima, não estudou o que devia estudar, muito provavelmente contra a vontade dele. Mas, se há desculpa para Saramago, não há desculpa para o país, que se resolveu escandalizar inutilmente com meia dúzia de patetices.

Claro que Saramago ganhou o Prémio Nobel, como vários “camaradas” que não valiam nada, e vendeu milhões de livros, como muita gente acéfala e feliz que não sabia, ou sabe, distinguir a mão esquerda da mão direita. E claro que o saloiice portuguesa delirou com a façanha. Só que daí não se segue que seja obrigatório levar a criatura a sério. Não assiste a Saramago a mais remota autoridade para dar a sua opinião sobre a Bíblia ou sobre qualquer outro assunto, excepto sobre os produtos que ele fabrica, à maneira latino-americana, de acordo com o tradição epigonal indígena. Depois do que fez no PREC, Saramago está mesmo entre as pessoas que nenhum indivíduo inteligente em princípio ouve.

O regime de liberdade, aliás relativa, em que vivemos permite ao primeiro transeunte evacuar o espírito de toda a espécie de tralha. É um privilégio que devemos intransigentemente defender. O Estado autoriza Saramago a contribuir para o dislate nacional, mas não encomendou a ninguém? principalmente a dignatários da Igreja como o bispo do Porto – a tarefa de honrar o dislate com a sua preocupação e a sua crítica. Nem por caridade cristã. D. Manuel Clemente conhece com certeza a dificuldade de explicar a mediocridade a um medíocre e a impossibilidade prática de suprir, sobre o tarde, certos dotes de nascença e de educação. O que, finalmente, espanta neste ridículo episódio não é Saramago, de quem – suponho – não se esperava melhor. É a extraordinária importância que lhe deram criaturas com bom senso e a escolaridade obrigatória.

Vasco Pulido Valente